19 Março 2024

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Erupção do Fogo de 2014 – algumas lições a aprender

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A erupção do vulcão do Fogo a 23 de Novembro de 2014, 19 anos e meio após a anterior ocorrência, veio chamar a atenção de todos para a importância da gestão eficaz do risco vulcânico por parte das autoridades de Cabo Verde. Depois de no século XX o vulcão se ter mostrado menos activo, com apenas duas erupções em 1951 e em 1995, desta vez o intervalo entre erupções sucessivas quase que coincidiu com o valor médio para o período histórico: 20 anos. Fica deste modo evidente – até pelo excepcional impacto desta erupção - que se trata de um fenómeno natural com elevado potencial disruptivo para as actividades humanas, ainda que pelas suas características específicas não configure um elevado risco para a vida humana. Uma primeira evidência que salta aos olhos é que Cabo Verde estava mais preparado para fazer face a esta erupção do que há 20 anos atrás. O Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica (INMG) e a Universidade de Cabo Verde (UniCV) tinham já inscrito nas suas prioridades o acompanhamento da actividade vulcânica secundária do Fogo nos períodos entre erupções (actividade sísmica, deformação da crosta, emissão de gases). O ServiçoNacional de Protecção Civil (SNPC) apresentava-se mais organizado e equipado, e alguns exercícios de simulação tinham sido levados a cabo para preparar a resposta a uma eventual emergência vulcânica. Na verdade, a monitorização vulcânica feita em Cabo Verde nos últimos anos conduziu a um resultado científico notável, de que em meu entender todos os Caboverdianos se devem orgulhar: a erupção de 23 de novembro foi inequivocamente prevista na véspera da sua ocorrência, altura em que o INMG emitiu um alerta formal de eminência de erupção para o SNPC. Já com cerca de 30 dias de antecedência o INMG tinha sido solicitado ao SNPC um canal de comunicação especial, por haver uma probabilidade acrescida de ocorrência de uma erupção. Este desempenho do INMG já foi elogiado por especialistas dos serviços geológicos franceses, entre outros cientistas internacionais, que o classificaram como “above the state of the art”, ou seja, do melhor que se faz a nível mundial. Infelizmente, a percepção da opinião pública em relação a este feito foi obscurecida pelo ruído mediático em torno de uma eventual falha das autoridades de Cabo Verde quanto ao acatamento de alertas supostamente emitidos com vários meses de antecedência. Tenho que afirmar frontalmente que considero essas acusações infundadas, injustas e irresponsáveis. Senão, vejamos o que de facto se passou. No mês de março de 2014 foram feitas, no âmbito de uma colaboração UniCV-ITER (Canárias), medições de fluxo de dióxido de carbono na Chã das Caldeiras que indicaram um valor significativamente superior às medições anteriores. Em Abril, o site da UniCV incluiu uma notícia sobre essas medições anómalas, sublinhando a importância da monitorização de gases num programa de vigilância vulcânica. Nada mais legítimo. A posteriori, após o início da erupção de novembro, viria a ser invocado na comunicação social (registe-se, com uma rápida demarcação por parte dos responsáveis da UniCV) que essa notícia teria constituído um alerta de que se aproximava uma erupção. Esta interpretação – repito, divulgada após o início da erupção - é totalmente destituída de fundamento. Em boa verdade, se um tal alerta tivesse sido emitido em abril isso seria um exemplo de má aplicação da vigilância vulcânica, pois seria uma reacção precipitada a uma observação anómala isolada. Os falsos alertas constituem o pior inimigo de qualquer programa de monitorização vulcânica, pois rapidamente contribuem para a sua descredibilização, pelo que devem ser evitados ao máximo. A notícia de emanações anómalas de gases divulgada no site da UniCV em abril de 2014 não foi ignorada, contrariamente ao que chegou a ser afirmado: eu próprio, em Lisboa, tive oportunidade de me pronunciar sobre essas observações, a pedido do INMG. Mas a pergunta é legítima: o que deveriam ter feito as autoridades de Cabo Verde em face dessa notícia? Na minha opinião - baseada em décadas de investigação na área de mitigação do risco vulcânico - deveriam manter a observação diária, rigorosa e sistemática dos outros parâmetros monitorizados (actividade sísmica, reconhecida como o indicador mais fiável; e deformação do solo), no sentido de alertar formalmente o SNPC no momento adequado, quando um comportamento anómalo de vários indicadores fosse detectado. Ou seja, exactamente o que foi feito. Em minha opinião Cabo Verde está de parabéns pela competência com que as instituições geriram esta situação difícil, mantendo a serenidade e evitando precipitações irresponsáveis. É importante realçar que o ruído mediático em torno de um eventual falhanço das autoridades de Cabo Verde foi exógeno (revelando em meu entender um exemplo de cooperação internacional no seu pior). Mas é importante saber tirar lições destes aspectos menos positivos, e introduzir medidas correctivas para o futuro. Apesar de todos os progressos referidos mais acima, a erupção de 2014 veio encontrar um sistema nacional de protecção civil (algo que transcende o SNPC, e inclui a universidade, os laboratórios do Estado, as autarquias, etc) com algumas disfunções. A causa destas disfunções é fácil de identificar: mais uma vez com origem exógena – mas lamentavelmente com a anuência de instituições Caboverdianas, que não cuidaram que assim fragilizavam a capacidade nacional de resposta a uma emergência – estabeleceu-se em Cabo Verde nos últimos cinco anos um consórcio destinado à observação vulcânica, caracterizado por forte dependência em relação a competências científicas estrangeiras. Este processo ostracizou valências já existentes no país (fruto de um esforço contínuo que se iniciou logo após a erupção de 1995), promovendo por essa via o desacordo e a competição onde deveria haver sintonia e esforço comum. Este caminho, que em meu entender urge arrepiar, pôs em risco a eficácia do programa de vigilância vulcânica de Cabo Verde. Se já é grave, na minha opinião, que o modelo assim adoptado configure um efectivo enfraquecimento do sistema científico nacional numa área tão sensível, considero particularmente infeliz a circunstância de o SNPC ser um dos parceiros de uma organização científica que visa a observação vulcânica. Mormente quando a legislação de Cabo Verde estipula como entidade responsável pela emissão de alertas de erupção vulcânica uma entidade – o INMG – não incluída no consórcio de que fazia parte o SNPC. Este arranjo é naturalmente propício a uma menor receptividade do SNPC a informações provenientes da entidade responsável, em benefício das informações emanadas do interior do consórcio. Independentemente de uma análise mais detalhada das implicações que esta solução acarretou para a resposta do SNPC nas primeiras horas após o alerta, creio ser já possível recomendar que se “baralhe e dê de novo”. No meu entender, em qualquer modelo o SNPC deve ser um parceiro exterior ao sistema científico, mantendo-se informado dos progressos tecno-científicos mas equidistante das instituições que os promovem. Para que o sistema nacional de protecção civil funcione sem disfunções face à mitigação do risco vulcânico, é fundamental a existência de uma plataforma que sirva efectivamente para promover a interacção dos parceiros do sistema tecno-científico de Cabo Verde que tenham uma palavra a dizer na área da monitorização vulcânica, valorizando as competências nacionais. A um outro nível, é necessário um orgão consultivo para os decisores políticos, onde estejam representados todos os “stake-holders”: cientistas, agentes de protecção civil a nível autárquico e a nível nacional, autoridades, representantes da população exposta. O debate e o confronto de ideias nestas instâncias promoverão o melhoramento das medidas de mitigação do risco. Uma regra, porém, deve ser cumprida escrupulosamente: quando quem de direito accionar os mecanismos de alerta face a uma emergência eminente, apenas os canais de comunicação previamente estipulados deverão funcionar, cessando todas as outras vozes. Os próximos anos trazem a oportunidade para implementar em Cabo Verde um sistema de protecção civil para a área do risco vulcânico mais eficaz, corrigindo os desvios do passado à luz das lições aprendidas com a erupção de novembro de 2014. Nesse processo, será necessário, a meu ver, apostar na capacitação científica nacional evitando a todo o custo a criação ou a manutenção de dependências estrangeiras nas áreas científicas mais criticas. E será também condição indispensável que os intervenientes nacionais façam o exercício de humildade de colocar de lado egos e ânsias de protagonismo, à luz da nobreza da tarefa que terão entre mãos. É um privilégio colocar o nosso saber e a nossa competência ao serviço da protecção das vidas e dos bens dos nossos concidadãos, e a consciência do dever cumprido deve ser em si paga suficiente. Geofísico, Professor Universitário

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